As novas
experiências que estou a viver em Angola vão se sucedendo de uma forma rápida e
surpreendente ao ponto de considerar algumas como as melhores que tive em toda
a minha vida. Umas são muito negativas outras admiravelmente positivas, destas
últimas gostaria de retractar a que vivi há pouco mais de 48 horas.
O destino
era um local algures nas margens do Rio Wezo, algo que só descobri quando ai
cheguei, até lá andei completamente às cegas. O destino nunca me fora revelado
apesar de eu ser a pessoa encarregue da missão e de ter a responsabilidade de
transportar toda a comitiva.
Para evitar
o trânsito saí de Luanda em direcção ao Caxito pelas 5 da manhã, nunca tinha
conduzido à noite, melhor nunca tinha conduzido à noite e sozinho em Angola,
devo dizer que é um verdadeiro perigo, os condutores dos veículos que circulam
na faixa de sentido contrário conduzem quase sempre de máximos ligados, os
peões atravessam a qualquer momento e em qualquer local da estrada, uma mistura
verdadeiramente explosiva, conduzir nestas condições requer o dobro da atenção.
Poucos minutos antes das 7 da manhã já tinha feito o “mata-bicho” e estava
tranquilamente à espera do Sr. "General" Leão, este seria o
responsável por me guiar até ao destino. Primeiro diálogo com o
"General":
_ “o Dr.
trás os 10 saldos(1) que combinámos ontem?”,
_ “sim,
trago Sr. General!”,
_ “óptimo,
vamos comprar vinho antes de partirmos.”
Assim, sem
mais, foi o primeiro contacto com uma pessoa que acabara de conhecer.
Esta viagem,
ou melhor esta expedição seria guiada na íntegra pelo "General" Leão
(apesar de eu ser o responsável oficial), é ele que decidirá onde se pára, e o
que se faz nesse local, com que pessoas se fala, se se pode tirar fotografias
(para não melindrar as pessoas) e inclusive onde e quando paramos para comer e
fazer as necessidades fisiológicas.
A expedição foi preparada na véspera, entre
outras tarefas, tive de carregar uma geleira com várias bebidas frescas, desde
Coca-cola a água tónica, sem esquecer a celebre cerveja Cuca e claro está muita
água mineral. Estas bebidas, ao contrário do que pensei, não estavam destinadas
ao nosso consumo (excepto a água mineral), mas sim a oferendas aos Sobas(2)
e a um ou outro agricultor ou caçador-recolector a quem o "General"
decidisse ser merecedor de tal. Nada é ao acaso, as oferendas são essenciais
tanto no caminho como no local de destino.
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Mercado junto à estrada |
Eram cerca
das 8.40 da manhã quando recolhi o último membro da tripulação junto ao posto
de controlo policial do chamado cruzamento da Barra do Dande, a uns bons 25 km
da barra do Rio Dande.
A Helena, uma enfermeira que trabalhava num hospital
aproveitou a nossa boleia até ao seu local de trabalho, fez-nos uma simpática
companhia durante 15 km. Depois iniciamos o caminho de 95 km até aos nosso
objectivo, com uma primeira paragem para comer a Sopa(3) num mercado junto à estrada que
liga as províncias do Bengo e do Zaire, a poucos km da entrada da picada pelo
mato dentro que nos leva ao Rio Wezo.
Pouco passava da 9.30 horas, enquanto eu comia uma
sandes de queijo, e bebia uma Coca-cola para a cafeina despertar os meus
sentidos, o "General", arrumou com dois copos de vinho tinto Monte
Velho retirados do “pipalete” de 5 litros, e comeu um pedaço de carne de Jacaré
que uma vendedora acabara de assar nas brasas espalhadas num circulo de pedras
desenhado no chão. Nesse momento percebi para quem era o vinho que poucas
horas antes tinha comprado, e fiquei a conhecer o cheiro agradável da carne de
Jacaré assada.
Os três terminamos com uma banana, a minha crua, a do
"General" e a do Santos, assadas, é que comer fruta em Angola sem
sermos nós a descascar pode trazer um problema de saúde, para mais quando
existe um surto de cólera em alguns locais fora da cidade de Luanda.
Finalmente
soube o que é conduzir numa picada, passava bem das 10 da manhã quando
iniciamos o percurso de 50 e picos km pelo deserto e mato dentro, um trilho que
a espaços está degradado pela influência das chuvas, mas que se supera
facilmente num veículo todo o terreno, o meu “Landinho” que ficou em Portugal
ia gostar deste percurso.
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Compra de Caça |
Fizemos
algumas paragens em Bairros(4)que fomos encontrando pelo caminho, paragens
para perguntar onde poderíamos encontrar caça à venda, até que encontramos
alguém disposto a vender uma Seixa(5) por 1.500 kz, um preço de amigo
segundo o "General". Fiquei no carro enquanto o "General"
supostamente apurou a qualidade e frescura da peça de caça e negociou o preço
da transacção, bem, a verdade é que fiquei dentro do carro meramente por
precaução, uma vez que por aquelas bandas existe a forte probabilidade de nos
confrontarmos com a mosca do sono, a famosa Tsé-tsé.
E eu a necessitar tanto de
dormir, mas não desta forma!
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Pedra Genga |
Km a trás de
km lá fomos palmilhando o trilho, 3 horas depois chegámos ao Rio Wezo, local
que pensei ser o destino final, mas mais uma vez estava enganado, ainda
teríamos mais 1 hora de caminho até chegar ao Bairro do nosso destino.
Para lá
chegar teríamos de passar ao lado da Pedra Genga uma referência para todos os
habitantes das margens do Wezo, um maciço granítico muito peculiar localizado
entre a margem direita do Rio e a picada de ligação à povoação do nosso
destino.
Foi o percurso da picada em pior estado, tive de recorrer várias vezes
aos cavalos e à tracção 4x4 do Land Cruiser para sair da lama que encontrei a
espaços, mas passada a hora prevista de caminho chegámos ao destino.
À entrada do
Bairro está a escola, um local de construção recente que confina com um
edifício colonial para o mesmo fim, o problema é que apesar da existência de
mais de 40 crianças nesta povoação, a escola não funciona por falta de
professor, "nenhum quer ir para este fim do mundo", comentou o
"General".
Percorremos duas centenas de metros entre a escola e o
final do Bairro para chegarmos ao local onde se encontrava o Soba da zona. Um
sobrinho dos "General" Leão, Soba de um outro Bairro que passámos
pelo caminho e que nos acompanhou nos últimos 17 km, saiu do Land Cruiser e foi anunciar
a nossa presença e o que nos trazia a visitá-lo.
Sim, visitá-lo, porque é ao
Soba que visitamos não à sua população, só após a sua ordem é que podemos de
algum modo e restritamente contactar com os restantes habitantes, isto porque
eu sou Mondelê(6), e também porque se estava a realizar um óbito(7)de
um jovem de 31 anos que morrera na véspera em Luanda devido a uma doença
súbita.
Ainda ao
volante do veiculo, mas já parado numa sombra de Mangueira(8) olhei
pela janela e reparei num grupo de crianças de olhar arregalado a observarem-me
enquanto comentavam algo entre eles.
Obtida a devida autorização, sai do veículo
e dirigi-me ao conselho onde além do Soba os restantes Homens do Bairro
esperavam sentados num quase círculo, reparei que restavam 4 cadeiras vazias,
calculei que seriam destinadas aos visitantes entre os quais me incluía, essas
4 cadeiras encontravam-se estrategicamente colocadas em frente ao Soba para
facilitar a comunicação e a avaliação dos olhos dos visitantes.
No percurso de
uma vintena de metros até ao conselho, as crianças que há poucos minutos me
observavam, aproximaram-se e algumas delas agarram levemente as minhas pernas,
eis quando ouvi o comentário mais surpreendente da minha vida, uma das crianças
repete duas vezes… “é gente, é gente!”, fiquei com um nó na garganta e percebi
a pureza daquela gente!
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Sentado à esquerda o Soba |
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Curiosidade |
O que se
passou no conselho não vou divulgar publicamente, devo isso em respeito ao
Soba, vou simplesmente dizer que foi uma experiência inesquecível e
positivamente gratificante, deu para perceber que quase às portas de uma grande
cidade como Luanda existe um mundo muito diferente, com gente de uma
simplicidade incrível e de uma honestidade sem igual.
Saí daquele local
interiormente uma pessoa diferente, ver a esperança de melhoria da condição de
vida nos olhos daquelas pessoas foi marcante... sejamos nós capazes de o fazer!
Não deixei o
local sem escolher o meu Imbondeiro, uma oferta do Soba para que eu seja sempre
bem-vindo à sua comunidade, marquei-o orgulhosamente com um M e registei a sua
imponência numa fotografia.
Os cerca de
60 minutos em que contactei com estas pessoas acompanharam-me no pensamento
durante as longas 4 horas de picada, isto já no regresso à estrada de alcatrão que os
chineses estão a reabilitar e que confortavelmente me trouxeram de volta a
Luanda, não sem antes fazer com uma paragem na Barra do Rio Dande para um
fantástico pôr-do-sol como só África oferece.
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Por-do-Sol na Barra do Dande |
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O meu Imbondeiro |
(1)
1.000,00 Kz
(2)
O Soba é uma autoridade
regional tradicional de Angola.
(3) Designação para o pequeno almoço Angolano.
(4)
Um povoado do género aldeia no meio do mato formada por meia
dúzia de cubatas.
(5)
Um pequeno ruminante da família do veado, mais
pequeno que uma cabra, também localmente conhecido por bambi ou ainda cabra do mato.
(6)
Homem Branco.
(7)
Uma festa que se realiza quando morre uma pessoa, incluí a cerimónia do
funeral.
(8)
Árvore que dá o fruto vulgarmente conhecido por Manga.