sexta-feira, 15 de março de 2013

Viagem à margem do Rio Wezo.

As novas experiências que estou a viver em Angola vão se sucedendo de uma forma rápida e surpreendente ao ponto de considerar algumas como as melhores que tive em toda a minha vida. Umas são muito negativas outras admiravelmente positivas, destas últimas gostaria de retractar a que vivi há pouco mais de 48 horas.
O destino era um local algures nas margens do Rio Wezo, algo que só descobri quando ai cheguei, até lá andei completamente às cegas. O destino nunca me fora revelado apesar de eu ser a pessoa encarregue da missão e de ter a responsabilidade de transportar toda a comitiva.
Para evitar o trânsito saí de Luanda em direcção ao Caxito pelas 5 da manhã, nunca tinha conduzido à noite, melhor nunca tinha conduzido à noite e sozinho em Angola, devo dizer que é um verdadeiro perigo, os condutores dos veículos que circulam na faixa de sentido contrário conduzem quase sempre de máximos ligados, os peões atravessam a qualquer momento e em qualquer local da estrada, uma mistura verdadeiramente explosiva, conduzir nestas condições requer o dobro da atenção.
Poucos minutos antes das 7 da manhã já tinha feito o “mata-bicho” e estava tranquilamente à espera do Sr. "General" Leão, este seria o responsável por me guiar até ao destino. Primeiro diálogo com o "General":
_ “o Dr. trás os 10 saldos(1) que combinámos ontem?”,
_ “sim, trago Sr. General!”,
_ “óptimo, vamos comprar vinho antes de partirmos.”
Assim, sem mais, foi o primeiro contacto com uma pessoa que acabara de conhecer.
Esta viagem, ou melhor esta expedição seria guiada na íntegra pelo "General" Leão (apesar de eu ser o responsável oficial), é ele que decidirá onde se pára, e o que se faz nesse local, com que pessoas se fala, se se pode tirar fotografias (para não melindrar as pessoas) e inclusive onde e quando paramos para comer e fazer as necessidades fisiológicas.
A expedição foi preparada na véspera, entre outras tarefas, tive de carregar uma geleira com várias bebidas frescas, desde Coca-cola a água tónica, sem esquecer a celebre cerveja Cuca e claro está muita água mineral. Estas bebidas, ao contrário do que pensei, não estavam destinadas ao nosso consumo (excepto a água mineral), mas sim a oferendas aos Sobas(2) e a um ou outro agricultor ou caçador-recolector a quem o "General" decidisse ser merecedor de tal. Nada é ao acaso, as oferendas são essenciais tanto no caminho como no local de destino.
Mercado junto à estrada
Eram cerca das 8.40 da manhã quando recolhi o último membro da tripulação junto ao posto de controlo policial do chamado cruzamento da Barra do Dande, a uns bons 25 km da barra do Rio Dande.
A Helena, uma enfermeira que trabalhava num hospital aproveitou a nossa boleia até ao seu local de trabalho, fez-nos uma simpática companhia durante 15 km. Depois iniciamos o caminho de 95 km até aos nosso objectivo, com uma primeira paragem para comer a Sopa(3) num mercado junto à estrada que liga as províncias do Bengo e do Zaire, a poucos km da entrada da picada pelo mato dentro que nos leva ao Rio Wezo.
Pouco passava da 9.30 horas, enquanto eu comia uma sandes de queijo, e bebia uma Coca-cola para a cafeina despertar os meus sentidos, o "General", arrumou com dois copos de vinho tinto Monte Velho retirados do “pipalete” de 5 litros, e comeu um pedaço de carne de Jacaré que uma vendedora acabara de assar nas brasas espalhadas num circulo de pedras desenhado no chão. Nesse momento percebi para quem era o vinho que poucas horas antes tinha comprado, e fiquei a conhecer o cheiro agradável da carne de Jacaré assada.
Os três terminamos com uma banana, a minha crua, a do "General" e a do Santos, assadas, é que comer fruta em Angola sem sermos nós a descascar pode trazer um problema de saúde, para mais quando existe um surto de cólera em alguns locais fora da cidade de Luanda.
Finalmente soube o que é conduzir numa picada, passava bem das 10 da manhã quando iniciamos o percurso de 50 e picos km pelo deserto e mato dentro, um trilho que a espaços está degradado pela influência das chuvas, mas que se supera facilmente num veículo todo o terreno, o meu “Landinho” que ficou em Portugal ia gostar deste percurso. 
Compra de Caça
Fizemos algumas paragens em Bairros(4)que fomos encontrando pelo caminho, paragens para perguntar onde poderíamos encontrar caça à venda, até que encontramos alguém disposto a vender uma Seixa(5) por 1.500 kz, um preço de amigo segundo o "General". Fiquei no carro enquanto o "General" supostamente apurou a qualidade e frescura da peça de caça e negociou o preço da transacção, bem, a verdade é que fiquei dentro do carro meramente por precaução, uma vez que por aquelas bandas existe a forte probabilidade de nos confrontarmos com a mosca do sono, a famosa Tsé-tsé.
E eu a necessitar tanto de dormir, mas não desta forma!
Pedra Genga
Km a trás de km lá fomos palmilhando o trilho, 3 horas depois chegámos ao Rio Wezo, local que pensei ser o destino final, mas mais uma vez estava enganado, ainda teríamos mais 1 hora de caminho até chegar ao Bairro do nosso destino.
Para lá chegar teríamos de passar ao lado da Pedra Genga uma referência para todos os habitantes das margens do Wezo, um maciço granítico muito peculiar localizado entre a margem direita do Rio e a picada de ligação à povoação do nosso destino.
Foi o percurso da picada em pior estado, tive de recorrer várias vezes aos cavalos e à tracção 4x4 do Land Cruiser para sair da lama que encontrei a espaços, mas passada a hora prevista de caminho chegámos ao destino.
À entrada do Bairro está a escola, um local de construção recente que confina com um edifício colonial para o mesmo fim, o problema é que apesar da existência de mais de 40 crianças nesta povoação, a escola não funciona por falta de professor, "nenhum quer ir para este fim do mundo", comentou o "General".
Percorremos duas centenas de metros entre a escola e o final do Bairro para chegarmos ao local onde se encontrava o Soba da zona. Um sobrinho dos "General" Leão, Soba de um outro Bairro que passámos pelo caminho e que nos acompanhou nos últimos 17 km, saiu do Land Cruiser e foi anunciar a nossa presença e o que nos trazia a visitá-lo.
Sim, visitá-lo, porque é ao Soba que visitamos não à sua população, só após a sua ordem é que podemos de algum modo e restritamente contactar com os restantes habitantes, isto porque eu sou Mondelê(6), e também porque se estava a realizar um óbito(7)de um jovem de 31 anos que morrera na véspera em Luanda devido a uma doença súbita.
Ainda ao volante do veiculo, mas já parado numa sombra de Mangueira(8) olhei pela janela e reparei num grupo de crianças de olhar arregalado a observarem-me enquanto comentavam algo entre eles.
Obtida a devida autorização, sai do veículo e dirigi-me ao conselho onde além do Soba os restantes Homens do Bairro esperavam sentados num quase círculo, reparei que restavam 4 cadeiras vazias, calculei que seriam destinadas aos visitantes entre os quais me incluía, essas 4 cadeiras encontravam-se estrategicamente colocadas em frente ao Soba para facilitar a comunicação e a avaliação dos olhos dos visitantes.
No percurso de uma vintena de metros até ao conselho, as crianças que há poucos minutos me observavam, aproximaram-se e algumas delas agarram levemente as minhas pernas, eis quando ouvi o comentário mais surpreendente da minha vida, uma das crianças repete duas vezes… “é gente, é gente!”, fiquei com um nó na garganta e percebi a pureza daquela gente!
Sentado à esquerda o Soba
Curiosidade
O que se passou no conselho não vou divulgar publicamente, devo isso em respeito ao Soba, vou simplesmente dizer que foi uma experiência inesquecível e positivamente gratificante, deu para perceber que quase às portas de uma grande cidade como Luanda existe um mundo muito diferente, com gente de uma simplicidade incrível e de uma honestidade sem igual.
Saí daquele local interiormente uma pessoa diferente, ver a esperança de melhoria da condição de vida nos olhos daquelas pessoas foi marcante... sejamos nós capazes de o fazer!
Não deixei o local sem escolher o meu Imbondeiro, uma oferta do Soba para que eu seja sempre bem-vindo à sua comunidade, marquei-o orgulhosamente com um M e registei a sua imponência numa fotografia. 
Os cerca de 60 minutos em que contactei com estas pessoas acompanharam-me no pensamento durante as longas 4 horas de picada, isto já no regresso à estrada de alcatrão que os chineses estão a reabilitar e que confortavelmente me trouxeram de volta a Luanda, não sem antes fazer com uma paragem na Barra do Rio Dande para um fantástico pôr-do-sol como só África oferece.
Por-do-Sol na Barra do Dande
O meu Imbondeiro

(1)    1.000,00 Kz
(2)    O Soba é uma autoridade regional tradicional de Angola.
(3)   Designação para o pequeno almoço Angolano.
(4)    Um povoado do género aldeia no meio do mato formada por meia dúzia de cubatas.
(5)    Um pequeno ruminante da família do veado, mais pequeno que uma cabra,  também localmente conhecido por bambi ou ainda cabra do mato.
(6)    Homem Branco.
(7)    Uma festa que se realiza quando morre uma pessoa, incluí a cerimónia do funeral.
(8)    Árvore que dá o fruto vulgarmente conhecido por Manga.
 

6 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderEliminar
  2. Por vezes quando estava a ler esta estória, lembrei-me do livro das Minas do Rei Salomão, que li na minha juventude. Não só por estar muito bem escrito mas sobretudo pelo ambiente de aventura e enredo criado. Pena foi, não podermos sentir a discussão entre o Doutor e o Soba. Abraço e continua...

    ResponderEliminar
  3. Sempre atento aos teus escritos.
    Obrigado pela partilha destas tuas linhas.

    ResponderEliminar
  4. Belo relato Miguel! Partilha sempre, gostamos de te acompanhar... Beijinho!

    ResponderEliminar
  5. Que por-do-sol mais lindo!!! Amei!!! Continua mandando essas maravilosas fotos e os relatos das suas aventuras por Africa. Beijos.

    ResponderEliminar
  6. Emocionante que que vontade de conhecer :)

    ResponderEliminar